PARAR PARA VER. BRILHOS, PURPURINAS E TRANSCENDÊNCIA.
Ana Anacleto
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A primeira década do séc. XX veio, como sabemos, introduzir — tanto na prática artística quanto na experiência da sua fruição — uma ruptura clara e sintomática com a tradição representacional da arte enquanto mecanismo de relação com o divino. A tradição que, durante séculos, assegurou ao objecto artístico a sua condição simbólica de suporte para a projecção de narrativas religiosas, conferindo-lhe um papel privilegiado na relação comunicacional com o espectador, deu lugar — nomeadamente através das propostas ensaiadas pelas primeiras vanguardas em aproximação à abstracção, de que são exemplo o cubismo, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, o suprematismo ou o construtivismo russo — a um entendimento do objecto artístico enquanto veículo portador, ele próprio, de um poder transcendente. Embora possamos partir do princípio de que nem toda a relação com a transcendência implica um exercício de visualidade, teremos de aceitar que grande parte dessa relação é despoletada ou por entidades que estão fora de nós, disponíveis para serem vistas, ou por projecções dessas entidades para o interior de nós, naquilo a que comummente chamamos exercício de imaginação. Aceitando, portanto, este princípio da visualidade e, nomeadamente, aquele que assenta no algo que está fora de nós para ser visto, convocaríamos agora aqui a ideia de um «estar» como fundamental à experiência da transcendência.
Da observação particularmente atenta às suas características originais resulta, por meio do tipo de intervenções já mencionado, a total elisão dessas mesmas características, afastando-se o objecto final da função ou necessidade que lhe deu origem. À artista também não interessam, sabemos, quaisquer relações com um determinado campo de referenciais sígnicos, isto é, para ela todas as formas são possíveis ou passíveis de utilização. Esta desfuncionalização e descorporização sígnica afasta o seu trabalho de qualquer processo comunicacional, conferindo-lhe um carácter silencioso, reforçando as suas características físicas e a relação que estabelece com o espaço no seu entorno.
Interessa-lhe uma prática, muitas vezes reduzida à mínima acção possível, na qual os valores tradicionais da escultura, enquanto disciplina, são frequentemente questionados por meio da afirmação de uma ideia de precariedade, de estranheza, de não-pertença, de leveza ou de fragilidade.
É curioso verificar também o interesse que parece ter vindo a manifestar (de forma muito contundente no conjunto de obras que produziu a pretexto da exposição Anátema) pela utilização da cor, pela observação do seu comportamento quando exposta a diferentes intensidades e tipologias lumínicas e, diríamos, pelo poder formal da cor, em presença. A ideia de presença, o «estar» de que falámos antes, volta a ser, portanto, convocado aqui. É na sua condição de apresentação que o processo parece ter um novo momento de configuração, adquirindo as suas obras especial interesse e relevo muito devido às relações dialógicas sugeridas por uma cuidada e precisa disposição no espaço expositivo. O trabalho de Ana Santos convida-nos a entrar na sala e a disponibilizarmo-nos para ver. Pede-nos tempo, demora, capacidade de observação. Pede-nos uma entrega à poética do detalhe e, apenas com a sua presença, na sua mais simples forma de «estar» — e ainda que distantes de qualquer processo ritualista —, as suas obras propõem-se ao espectador como veículos de acesso a um universo profundamente subjectivo, onde o seu poder imanente poderá potenciar, estamos certos, uma experiência do domínio da transcendência.
STOPPING TO SEE. GLOWS, GLITTER
AND TRANSCENDENCE.
Ana Anacleto
As we know, the first decade of the twentieth century introduced — both in artistic practice and the way that art is experienced — a clear and symptomatic rupture with the representational tradition of art as a mechanism for establishing a connection with the divine. The tradition that for centuries assured the artistic object its symbolic condition as a means to project religious narratives, assigning it a privileged role in the communicational relationship with the spectator, was replaced by an understanding of the artistic object as a vehicle endowed with a transcendental power in its own right — namely through the attempts of abstraction proposed by the first avant-garde movements, such as Cubism, Futurism, Dadaism, Surrealism, Suprematism or Russian Constructivism.
Although we may assume that not every relationship with transcendence implies an exercise of visuality, we must accept that much of this relationship is either triggered by entities that exist beyond us, available to be seen, or by projections of those entities within us, in what we commonly call an exercise of imagination. Accepting this principle of visuality, and particularly that which rests on something beyond us available to be seen, enables us to refer herein to the idea of "being" as a fundamental element of the experience of transcendence.
Ana Santos' artistic practice, framed in the expanded field of sculpture — or, more specifically, the production of objects — has revealed a particular approach to this idea of "being".
Based on the search for a very specific state of attention and promoting the use of sensitivity and intuition as a means to underline the uniqueness of the creative act, her works result from a process of reflection on the formal, functional, morphological or chromatic characteristics of certain found objects or materials, and from the relations she might want to test or establish between them. Everything commences in the artist’s studio, where found objects or acquired materials are taken without yet having a specific purpose in mind. They are left in the studio just to “be” there, to slowly affirm themselves through their physical presence, and then, in due time, become available to the artist's gaze, and thereby affirm the panoply of combinatorial hypotheses, manipulations, constructions and deconstructions, of possible interventions, until the condition for creating something totally new and unexpected is ensured. This process certainly implies the idea of a collaboration: the artist "is", and the objects and materials "are".
Through the aforementioned type of interventions, a close observation of their original characteristics results in their total elision, and the final object distances itself from its original function or need. We also know that the artist is not interested in any relationship to a specific field of sign-based references, i.e. she considers that all forms are possible or usable. This process of dysfunctionalisation and symbolic disembodiment detaches her work from any communicational process, granting it a silent character, reinforcing its physical characteristics and the relationship it establishes with the space around it.
She is interested in a practice, often reduced to the minimum possible action, in which the traditional values of sculpture as a discipline are often questioned through the assertion of an idea of precariousness, strangeness, non-belonging, lightness or frailty.
It is also curious to see her apparent interest (particularly noticeable in the set of works produced for the exhibition Anátema) in the use of colour, in the observation of its behaviour when exposed to different types and intensities of light and, one would say, in the formal power of colour in presence. The idea of presence, the aforementioned "being", is therefore once again evoked in this context. It is in its condition of physical presentation that the process seems to achieve a new moment of configuration, and her works acquire special interest and importance largely due to the dialogue-based relations suggested by the careful and precise layout of the exhibition space. Ana Santos’ work invites us to enter the room and see things. It asks us for time, patience, the ability to observe. It asks us to surrender to the poetics of details, and only through their presence, in their simplest form of "being" — and albeit far removed from any ritualistic process — her works present themselves to the beholder as vehicles that provide access to a deeply subjective universe where, we are quite sure, their immanent power can foster an experience of transcendence.
PARAR PARA VER. BRILHOS, PURPURINAS E TRANSCENDÊNCIA.
Ana Anacleto
A primeira década do séc. XX veio, como sabemos, introduzir — tanto na prática artística quanto na experiência da sua fruição — uma ruptura clara e sintomática com a tradição representacional da arte enquanto mecanismo de relação com o divino. A tradição que, durante séculos, assegurou ao objecto artístico a sua condição simbólica de suporte para a projecção de narrativas religiosas, conferindo-lhe um papel privilegiado na relação comunicacional com o espectador, deu lugar — nomeadamente através das propostas ensaiadas pelas primeiras vanguardas em aproximação à abstracção, de que são exemplo o cubismo, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, o suprematismo ou o construtivismo russo — a um entendimento do objecto artístico enquanto veículo portador, ele próprio, de um poder transcendente. Embora possamos partir do princípio de que nem toda a relação com a transcendência implica um exercício de visualidade, teremos de aceitar que grande parte dessa relação é despoletada ou por entidades que estão fora de nós, disponíveis para serem vistas, ou por projecções dessas entidades para o interior de nós, naquilo a que comummente chamamos exercício de imaginação. Aceitando, portanto, este princípio da visualidade e, nomeadamente, aquele que assenta no algo que está fora de nós para ser visto, convocaríamos agora aqui a ideia de um «estar» como fundamental à experiência da transcendência.
Da observação particularmente atenta às suas características originais resulta, por meio do tipo de intervenções já mencionado, a total elisão dessas mesmas características, afastando-se o objecto final da função ou necessidade que lhe deu origem. À artista também não interessam, sabemos, quaisquer relações com um determinado campo de referenciais sígnicos, isto é, para ela todas as formas são possíveis ou passíveis de utilização. Esta desfuncionalização e descorporização sígnica afasta o seu trabalho de qualquer processo comunicacional, conferindo-lhe um carácter silencioso, reforçando as suas características físicas e a relação que estabelece com o espaço no seu entorno.
Interessa-lhe uma prática, muitas vezes reduzida à mínima acção possível, na qual os valores tradicionais da escultura, enquanto disciplina, são frequentemente questionados por meio da afirmação de uma ideia de precariedade, de estranheza, de não-pertença, de leveza ou de fragilidade.
É curioso verificar também o interesse que parece ter vindo a manifestar (de forma muito contundente no conjunto de obras que produziu a pretexto da exposição Anátema) pela utilização da cor, pela observação do seu comportamento quando exposta a diferentes intensidades e tipologias lumínicas e, diríamos, pelo poder formal da cor, em presença. A ideia de presença, o «estar» de que falámos antes, volta a ser, portanto, convocado aqui. É na sua condição de apresentação que o processo parece ter um novo momento de configuração, adquirindo as suas obras especial interesse e relevo muito devido às relações dialógicas sugeridas por uma cuidada e precisa disposição no espaço expositivo. O trabalho de Ana Santos convida-nos a entrar na sala e a disponibilizarmo-nos para ver. Pede-nos tempo, demora, capacidade de observação. Pede-nos uma entrega à poética do detalhe e, apenas com a sua presença, na sua mais simples forma de «estar» — e ainda que distantes de qualquer processo ritualista —, as suas obras propõem-se ao espectador como veículos de acesso a um universo profundamente subjectivo, onde o seu poder imanente poderá potenciar, estamos certos, uma experiência do domínio da transcendência.
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STOPPING TO SEE. GLOWS, GLITTER
AND TRANSCENDENCE.
Ana Anacleto
As we know, the first decade of the twentieth century introduced — both in artistic practice and the way that art is experienced — a clear and symptomatic rupture with the representational tradition of art as a mechanism for establishing a connection with the divine. The tradition that for centuries assured the artistic object its symbolic condition as a means to project religious narratives, assigning it a privileged role in the communicational relationship with the spectator, was replaced by an understanding of the artistic object as a vehicle endowed with a transcendental power in its own right — namely through the attempts of abstraction proposed by the first avant-garde movements, such as Cubism, Futurism, Dadaism, Surrealism, Suprematism or Russian Constructivism.
Although we may assume that not every relationship with transcendence implies an exercise of visuality, we must accept that much of this relationship is either triggered by entities that exist beyond us, available to be seen, or by projections of those entities within us, in what we commonly call an exercise of imagination. Accepting this principle of visuality, and particularly that which rests on something beyond us available to be seen, enables us to refer herein to the idea of "being" as a fundamental element of the experience of transcendence.
Ana Santos' artistic practice, framed in the expanded field of sculpture — or, more specifically, the production of objects — has revealed a particular approach to this idea of "being".
Based on the search for a very specific state of attention and promoting the use of sensitivity and intuition as a means to underline the uniqueness of the creative act, her works result from a process of reflection on the formal, functional, morphological or chromatic characteristics of certain found objects or materials, and from the relations she might want to test or establish between them. Everything commences in the artist’s studio, where found objects or acquired materials are taken without yet having a specific purpose in mind. They are left in the studio just to “be” there, to slowly affirm themselves through their physical presence, and then, in due time, become available to the artist's gaze, and thereby affirm the panoply of combinatorial hypotheses, manipulations, constructions and deconstructions, of possible interventions, until the condition for creating something totally new and unexpected is ensured. This process certainly implies the idea of a collaboration: the artist "is", and the objects and materials "are".
Through the aforementioned type of interventions, a close observation of their original characteristics results in their total elision, and the final object distances itself from its original function or need. We also know that the artist is not interested in any relationship to a specific field of sign-based references, i.e. she considers that all forms are possible or usable. This process of dysfunctionalisation and symbolic disembodiment detaches her work from any communicational process, granting it a silent character, reinforcing its physical characteristics and the relationship it establishes with the space around it.
She is interested in a practice, often reduced to the minimum possible action, in which the traditional values of sculpture as a discipline are often questioned through the assertion of an idea of precariousness, strangeness, non-belonging, lightness or frailty.
It is also curious to see her apparent interest (particularly noticeable in the set of works produced for the exhibition Anátema) in the use of colour, in the observation of its behaviour when exposed to different types and intensities of light and, one would say, in the formal power of colour in presence. The idea of presence, the aforementioned "being", is therefore once again evoked in this context. It is in its condition of physical presentation that the process seems to achieve a new moment of configuration, and her works acquire special interest and importance largely due to the dialogue-based relations suggested by the careful and precise layout of the exhibition space. Ana Santos’ work invites us to enter the room and see things. It asks us for time, patience, the ability to observe. It asks us to surrender to the poetics of details, and only through their presence, in their simplest form of "being" — and albeit far removed from any ritualistic process — her works present themselves to the beholder as vehicles that provide access to a deeply subjective universe where, we are quite sure, their immanent power can foster an experience of transcendence.