ISTO É O LABIRINTO, E O LABIRINTO É MUITAS COISAS.
João Seguro
Poderá um objeto existir verdadeiramente sem um grupo para reconhecê-lo, para fazê-lo, nomeá-lo ou qualificá-lo?
Existirá um único objeto para um único homem? É esta a questão.
A questão inversa é igualmente profunda: poderá tal grupo humano existir, poderá existir um perfeito acordo entre alguns homens, sem a condição pré-existente de que um objeto exista para eles? Não há objeto sem coletividade, nem coletividade sem um objeto. 1
Michel Serres
Entramos na sala branca do piso cimeiro da ala direita do Museu da Marinha e nada, neste lugar, ou no que nele se afigura, remete para a possível articulação das obras de Ana Santos e Belén Uriel que aqui nos são apresentadas em diálogo, com as suas imediações. Esse seria um pressuposto que podia servir como introdução à obra das artistas, à forma como abordaram a prática uma da outra, ou à proposta curatorial de Cláudia Ramos, que as colocou em posição de diálogo; mas seria uma porta de entrada simples que não faria justiça ao elenco correspondências ensaiado pelas artistas para este contexto expositivo que tem como estímulo a figura do labirinto.
Apesar da configuração do labirinto nos sugerir uma natural predisposição para o encontro, não podemos deixar de reparar numa espécie de subtil armadilha que as artistas arquitetam quando articulam as suas práticas num ambiente simultâneo – não existe nenhum enigma superlativo que suporte a relação entre as suas peças, não parece existir nenhuma narrativa maior que desenhe claramente essa aproximação.
De um ponto de vista curatorial, trazer ao diálogo a obra escultórica de Santos e Uriel é sublinhar que «os objetos físicos são conceptualmente importados para (um)a situação como intermediários convenientes...»2 e que estes articulam uma miríade de histórias acerca do poder dúplice dos objetos, que nos contam por um lado a sua história interna e, por extensão, nos contam a história dos outros objetos que os circundam e das diversas modalidades de relação.
São oito os objetos que habitam a sala de exposição, mas são muitas mais as portas de entrada na exposição, pois cada uma destas peças empreende uma entrada num labirinto de dobras e ecos, e a fuga do labirinto torna-se assim multiplicada por um número incontável de saídas.
As três peças de Ana Santos sem título, todas de 2018 são todas construídas dos mesmos materiais: aço inox, fios de poliéster e alumínio. As dimensões das peças variam ligeiramente entre elas, sendo a altura a variável mais relevante, uma peça mede 2,75 m, outra 2,59 m, outra 2,67 m. A verticalidade é provavelmente a característica mais facilmente identificável destas peças, bem como a sua materialidade que mistura uma corporalidade pós-industrial a matérias que são vestígios de uma manualidade crítica e em certa medida também arqueológica.
Este conjunto de três peças são o resultado ampliado de experiências que a artista já tinha testado em duas esculturas de parede - uma de 2013, sem título, fabricada em cartão, fita adesiva, fios de poliéster e um prato de plástico pintado; outra de 2015, também sem título, fabricada a partir de um objeto de ferro encontrado, do qual se suspendem os mesmos fios de poliéster.
As obras aqui apresentadas desdobram e intensificam as pesquisas fundamentais que as duas peças citadas antecipavam, fazendo com que as reminiscências materiais e morfológicas se transformem num muito velado exercício performativo de posicionamento da tensão dos materiais e da insinuação que estes fazem do corpo humano em ponto de tensão, como se de um corpo num espaldar Sueco se tratasse, para usar uma expressão de Umberto Eco, ao referir-se à obediência da linguagem às estruturas gramaticais, e que aqui pode ser analogamente entendida como a sujeição dos materiais às formas construtivas. Os objetos são compostos por elementos e materiais oriundos de famílias diferentes que, pela conjugação das partes em estranhas situações de tensão, denotam uma intuição que coloca estas esculturas no terreno existente entre facto e ato, entre matéria e acontecimento, ou seja, no domínio da potencialidade. Por isso estas esculturas sugerem uma situação limite, na senda do que Agamben3 indica como sendo um limiar, entre acontecimento e não acontecimento ou, como a figura da pura singularidade, que se situa em simultâneo no interior e no exterior do próprio objeto.
As peças recentes, ao saírem da parede, negando qualquer relação de afetação a uma estrutura de suporte e ao verticalizarem-se, desencadeiam a hipótese de contínua renovação que tem sido prerrogativa da obra de Santos, na qual os processos visuais e semânticos inferem a natureza inclassificável de todas as coisas. O que importa nestas peças de Santos é a corporalidade das matérias que coloca em diálogo e a forma como essa ligação é feita a partir de um processo de experimentação resultante de cuidadas observações à excepcionalidade das matérias e objetos vulgares, aliada a um modo criativo e construtivo muito detalhado, no qual as matérias mais prosaicas são tratadas com a precisão da joalharia e a escala da arquitetura.
Estas três peças têm várias particularidades, algumas ligadas à sua verticalidade denunciadora de uma certa herança modernista da escultura, outras que circunscrevem e definem os processos de trabalho da artista e a sua curiosa relação com os materiais. Grandes volumes verticais de tubagem em aço inox, organizados em corpos que partem do plano do chão e se erguem a alturas antropométricas, deixam cair em franjas de fios azuis, laranja e verdes, volumes que se desenham rigorosamente a partir da circunferência do tubo de onde caem. Esta encenação que Ana Santos opera no material mole e informe, atribuindo-lhe um rigor contranatural, é fabricada através de uma meticulosa acoplação dos fios aos tubos por meio de um anel que permite a conexão dos dois materiais, e que obriga a franja de fios a assumir (mesmo que apenas provisoriamente) a estrutura do tubo. Há naturalmente um intercâmbio entre materiais que é provocado de forma a obrigar um a comportar-se como o outro, a assumir paradoxalmente as características de outro material e a sua configuração.
As peças azul e verde são simétricas quando observadas frente e verso, a verde tem um suporte em alturas na base a azul auto sustenta-se. A peça laranja e a única em que as múltiplas vistas possíveis são sempre diferentes pois a obra é constituída por dois corpos semelhantes mas assimétricos, tanto na sua escala como na conformação material. As pequenas diferenças construtivas parecem sugerir um jogo de atenção entre expectativas, uma visualidade puramente pictural e uma agência corporal essencial. A peça verde, que tem uma estrutura na base que suporta a peça, ao contrário das outras duas peças que têm origem no plano terra, introduz um elemento de surpresa neste conjunto, e obriga a uma reconsideração do plano chão, pelo enigma lúdico que provoca: uma pequena estrutura de metal em forma de escada, com dois pequenos pratos circulares, um deles num plano cimeiro vazio que parece aguardar receber não sabemos o quê, para um outro círculo semelhante receber os fios que escorrem desde o tubo que está no topo. As franjas verdes caem meticulosamente rasantes à superfície desse prato. Os elementos rígidos do metal inoxidável recebem os fios de poliéster de forma absolutamente rigorosa, destacando a diferença dos materiais e as reciprocidades que daí podem advir. O metal reluzente dos tubos, além de refletir a cor do caudal de linhas, reflete também vislumbres anamórficos do espaço e objetos circundantes; estas superfícies brilhantes fazem com que a questão da superfície da escultura, que historicamente é opaca e joga precisamente com o carácter absorvente da superfície rasgada aos materiais e dos seus vazios, surja aqui com um valor positivo, pois ativa um ricochete visual das formas alongadas que ocupam o espaço e que são remetidas para o lugar do observador pela propagação vertiginosa de vultos coloridos. Esta peça, com o pormenor arguto da sua base, sugere-nos um enigma que vai para além das questões levantadas pelas relações materiais, construtivas e morfológicas das outras duas peças: parece ser o ponto de contacto perfeito entre a obra de Santos à de Uriel, a acrescer à verticalidade de todas a peças e a uma manifesta articulação cromática.
Esta verticalidade ressuscita uma (já) longa história das artes visuais e dos regimes de visualidade e materialidade que parecem desde sempre incorporar, em questões tão elementares como a organização espacial, uma espectralidade do corpo e das suas formas de representação.
Num capítulo particularmente evocativo acerca da obra de vários escultores modernos, Rosalind Krauss debruça-se sobre as qualidades totémicas de certas obras escultóricas como vestígios de uma certa presença humana que está presente ou é invocada na obra das duas artistas.4
Krauss explica que muitas dessas obras se situam numa fronteira estranha entre a figura humana e o indício abstrato e constituem-se como expressões poderosamente abreviadas, de um conjunto de sentimentos e desejos que alguns desses autores sentiam ser operativos para si e para a sociedade como um todo. Nos conjuntos escultóricos que Uriel e Santos nos propõem, acontece uma operação semelhante; as artistas apostam num totemismo evidente, que coloca em confronto um conjunto de declarações que constituem o assunto da arte moderna - o recurso à horizontalidade e verticalidade como elementos identitários de determinados modelos de representação, o virtude na utilização de certos materiais como garante de reconhecimento de género, a aplicação de determinadas técnicas como enquadramento discursivo do pensamento e da criatividade – para nos obrigarem a pensar no enorme depósito retórico que esta pode ser, ao mesmo tempo que nos indicam uma lateralização dessas características que parecem ser epidérmicas, pois servem para revelar um conjunto de processos de ligação à condição humana, à sua difícil relação com os sistemas materiais que cadastram e condicionam a sua existência e atividade.
As peças de Belén são também sem título, embora descritas por subtítulos como “mãos”, de 2017, “costas” também de 2017, “braço e garrafa”, “descanso” e “torso e perna” de 2018. Além de partilharem com as peças de Ana Santos a principal caraterística formal, pois também as peças de Uriel afiguram em grande medida uma afirmativa verticalidade, ainda podemos apontar os materiais industriais com que as estruturas das esculturas de Uriel são fabricadas, que à semelhança dos enormes corpos cilíndricos de Santos, são também fabricadas em metal, reclamando uma presença industrial, por oposição aos subtis objetos que essas estruturas sustentam, e que de resto são origem e destino das partes do corpo humano que os subtítulos narram.
As peças, Mãos, Torso e Perna, e Braço e Garrafa, são as três peças que mais assumidamente remetem para a omnipresente verticalidade. Estas três peças são constituídas por estruturas metálicas coloridas com tonalidades amarelo e rosa ácidas, que suportam subtis objetos de vidro moldado colorido que aludem a partes do corpo humano. Estes objetos sugerem várias modalidades de aproximação, representação ou indução dos gestos próprios do corpo humano, das suas métricas próprias, traduzidas nas formas e nas estruturas dos objetos e dos gestos a estes essenciais.
As “mãos” são sugeridas por três arcos de vidro carmim que estão acoplados ao poste vertical rosado que lhe serve de suporte. Estes arcos, colocados a diversas alturas, evocam a manipulação destes objetos pela mão humana e as estrias do objeto sugerem atividade preênsil dos dedos. Ao serem colocados a diferentes alturas da compleição vertical do objeto, estas pequenas pegas adiantam ainda um dinamismo e uma colocação corporal que atribui à peça o sentido da ergonomia e da antropometria como ferramentas
indispensáveis à sua compreensão, não só porque o corpo humano é aqui reclamado diretamente, como ainda pela sua ominpresença nas outras obras que encontram em alguns objetos da nossa cultura material, a humanização do gesto e a sua tangibilidade mecânica ou psicológica.
Nas outras duas peças é isto precisamente o que acontece: em Torso e Perna e, Braço e Garrafa, a artista coloca em suspenso, em armações de metal colorido, objetos que sugerem tal como descrito nos títulos, um torso, uma perna, um braço e uma garrafa; os objetos apontados não são aqui descritos ou representados no sentido mais estrito, mas insinuados a partir de objetos que remetem para as suas formas e para os seus elementos caracterizadores. O torso é apresentado por uma pequena peça de azul celeste que lembra a parte cimeira de um tronco e que termina num pormenor que evoca uma gola ou colarinho que emoldura um pescoço (o objeto originalmente usado para fabricar esta peça pode ser de origem absolutamente diferente, mas utilizado por uma similitude formal ao objeto pretendido), a perna parece ser uma perna de uma peça de mobiliário, e o braço e a garrafa são resumidamente um braço de uma cadeira perfurado por um círculo com um diâmetro que invocam o gargalo de uma garrafa. Além destes elementos, a peça é ainda colocada numa posição vertical e posiciona-se em relação à estrutura que a suporta, como um braço humano em relação ao corpo a que pertence e do qual suspende - neste sentido, é a nomenclatura, a estrutura latente do corpo como grelha e o antorpomorfismo dos objetos usados, que mantêm presentes os predicados da afiguração que Uriel propõe. O corpo como estrutura e o os órgãos que o constituem como linguagem. A aproximação de Uriel a um corpo humano cifrado em objetos, lembra-nos como Foucault notou o “...o corpo como objeto e alvo de poder (...) que é manipulado, moldado, treinado; que obedece, responde, torna-se habilidoso e aumenta as suas forças.”5
As outras duas peças, Costas e Descanso, chamam novamente pelas referências que a artista faz recorrentemente ao design e ao equipamento móvel. Estas duas peças destacam-se das outras de Uriel aqui apresentadas, e de toda a lógica de verticalidade da exposição, pela forma como associa elementos que advêm diretamente de objetos reconhecíveis em situações de repouso. Costas, apresenta textualmente as costas de uma cadeira, que ao invés de estar vertical em relação ao assento a às pernas da mesma (para desempenhar a sua função de suporte do corpo sentado), se mostra deitada num suporte metálico azul. Aquilo que vemos parece ser o verso do objeto, tornando a referência ao fragmento da cadeira uma charada linguística e visual.
Igualmente em Descanso, somos confrontados com uma estrutura geométrica que suporta dois braços, semelhantes aos braços da peça Braço e Garrafa. Colocados sobre uma estrutura que bem podia ser uma base retráctil de uma cadeira e que aqui faz de suporte. Os dois braços aparecem colocados em posição de uso, embora dobrados, com se a cadeira estivesse ela mesma em posição de descanso. Os braços rígidos dão lugar a uma configuração flácida, insinuante de uma condição moldável do material usado, em contraponto à rigidez dos objetos a que estes vão buscar as suas formas e à anatomia arregimentada de que dão conta.
O obra de Uriel é assim uma formação discursiva em constante consideração das formas de representação intermediada do corpo na qual o mote da fragmentação desempenha um papel definidor da complexidade das nossas relações com os objetos, com a sua condição transitória, mutante e uma reflexão acerca da amplitude ontológica do corpo como medida de modernidade.
A aproximação da obra das artistas em contexto expositivo também releva um conjunto de posições comuns no que diz respeito ao funcionamento interno e externo das obras: a verticalidade geral e a negação de uma relação de subserviência à estrutura expositiva, numa clara oposição às paredes enquanto elemento organizador do espaço e da articulação das obras, fazem com que a centralização do circuito pelo qual orientamos a nossa aproximação à exposição seja também determinante. As peças aproximam-se do centro do espaço, são autónomas de apoios ou paredes, sugerem uma circulação em movimentos rítmicos, ajustados por cada possível pausa (em cada peça, cada ponto de vista e cada orientação), sugerindo uma atenção ao detalhe e uma libertação do espaço arquitetónico. Cada peça fornece uma porta de entrada, em estado repetitivo, que nos liberta em direção ao infinito.
“Quanto mais situado for um sujeito no seu ambiente, menos prontamente terá a impressão de que algo estranho existe nos objetos e eventos nele contidos.”6, explica-nos Vidler a partir do famoso dictum de Freud. A Estranheza destes objetos é a porta de entrada num labirinto, e o labirinto é muitas coisas.
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1 SERRES, MICHEL (1989), Friar - Stakes, Fetishes, Merchandise in Detachment, Ohio: University Press, p. 67.
2 QUINE, WILLARD VAN ORMAN (1963), “Two Dogmas of Empiricism”, in From a Logical Point of View, Logico-Philosophical Essays (segunda edição Nova Iorque e Evanston: revista Harper Torchbook, Harper and Row (Publicado originalmente em 1951), p. 44.
3 AGAMBEN, Giorgio (1998), Outside in, The Comming Community, Minneapolis e Londres: University of Minnesota Press, (1a ed. 1990), p. 67.
4 KRAUSS, Rosalind (1977), “Tanktotem: Welded Images”, in Passages in Modern Sculpture, Cambridge e Londres: MIT Press, pp.147-200.
5 FOUCAULT, Michel (1995), Docile Bodies in Discipline and Punish – The Birth of the Prison, Nova Iorque: Vintage Books, Random House, p. 136.
6 VIDLER, Anthony (1992), “Unhomely Houses”, in The Architectural Uncanny - Essays in the Modern Unhomely, Massachusetts e Londres: MIT Press Cambridge, p. 23.
ISTO É O LABIRINTO, E O LABIRINTO É MUITAS COISAS.
João Seguro
Poderá um objeto existir verdadeiramente sem um grupo para reconhecê-lo, para fazê-lo, nomeá-lo ou qualificá-lo?
Existirá um único objeto para um único homem? É esta a questão.
A questão inversa é igualmente profunda: poderá tal grupo humano existir, poderá existir um perfeito acordo entre alguns homens, sem a condição pré-existente de que um objeto exista para eles? Não há objeto sem coletividade, nem coletividade sem um objeto. 1
Michel Serres
Entramos na sala branca do piso cimeiro da ala direita do Museu da Marinha e nada, neste lugar, ou no que nele se afigura, remete para a possível articulação das obras de Ana Santos e Belén Uriel que aqui nos são apresentadas em diálogo, com as suas imediações. Esse seria um pressuposto que podia servir como introdução à obra das artistas, à forma como abordaram a prática uma da outra, ou à proposta curatorial de Cláudia Ramos, que as colocou em posição de diálogo; mas seria uma porta de entrada simples que não faria justiça ao elenco correspondências ensaiado pelas artistas para este contexto expositivo que tem como estímulo a figura do labirinto.
Apesar da configuração do labirinto nos sugerir uma natural predisposição para o encontro, não podemos deixar de reparar numa espécie de subtil armadilha que as artistas arquitetam quando articulam as suas práticas num ambiente simultâneo – não existe nenhum enigma superlativo que suporte a relação entre as suas peças, não parece existir nenhuma narrativa maior que desenhe claramente essa aproximação.
De um ponto de vista curatorial, trazer ao diálogo a obra escultórica de Santos e Uriel é sublinhar que «os objetos físicos são conceptualmente importados para (um)a situação como intermediários convenientes...»2 e que estes articulam uma miríade de histórias acerca do poder dúplice dos objetos, que nos contam por um lado a sua história interna e, por extensão, nos contam a história dos outros objetos que os circundam e das diversas modalidades de relação.
São oito os objetos que habitam a sala de exposição, mas são muitas mais as portas de entrada na exposição, pois cada uma destas peças empreende uma entrada num labirinto de dobras e ecos, e a fuga do labirinto torna-se assim multiplicada por um número incontável de saídas.
As três peças de Ana Santos sem título, todas de 2018 são todas construídas dos mesmos materiais: aço inox, fios de poliéster e alumínio. As dimensões das peças variam ligeiramente entre elas, sendo a altura a variável mais relevante, uma peça mede 2,75 m, outra 2,59 m, outra 2,67 m. A verticalidade é provavelmente a característica mais facilmente identificável destas peças, bem como a sua materialidade que mistura uma corporalidade pós-industrial a matérias que são vestígios de uma manualidade crítica e em certa medida também arqueológica.
Este conjunto de três peças são o resultado ampliado de experiências que a artista já tinha testado em duas esculturas de parede - uma de 2013, sem título, fabricada em cartão, fita adesiva, fios de poliéster e um prato de plástico pintado; outra de 2015, também sem título, fabricada a partir de um objeto de ferro encontrado, do qual se suspendem os mesmos fios de poliéster.
As obras aqui apresentadas desdobram e intensificam as pesquisas fundamentais que as duas peças citadas antecipavam, fazendo com que as reminiscências materiais e morfológicas se transformem num muito velado exercício performativo de posicionamento da tensão dos materiais e da insinuação que estes fazem do corpo humano em ponto de tensão, como se de um corpo num espaldar Sueco se tratasse, para usar uma expressão de Umberto Eco, ao referir-se à obediência da linguagem às estruturas gramaticais, e que aqui pode ser analogamente entendida como a sujeição dos materiais às formas construtivas. Os objetos são compostos por elementos e materiais oriundos de famílias diferentes que, pela conjugação das partes em estranhas situações de tensão, denotam uma intuição que coloca estas esculturas no terreno existente entre facto e ato, entre matéria e acontecimento, ou seja, no domínio da potencialidade. Por isso estas esculturas sugerem uma situação limite, na senda do que Agamben3 indica como sendo um limiar, entre acontecimento e não acontecimento ou, como a figura da pura singularidade, que se situa em simultâneo no interior e no exterior do próprio objeto.
As peças recentes, ao saírem da parede, negando qualquer relação de afetação a uma estrutura de suporte e ao verticalizarem-se, desencadeiam a hipótese de contínua renovação que tem sido prerrogativa da obra de Santos, na qual os processos visuais e semânticos inferem a natureza inclassificável de todas as coisas. O que importa nestas peças de Santos é a corporalidade das matérias que coloca em diálogo e a forma como essa ligação é feita a partir de um processo de experimentação resultante de cuidadas observações à excepcionalidade das matérias e objetos vulgares, aliada a um modo criativo e construtivo muito detalhado, no qual as matérias mais prosaicas são tratadas com a precisão da joalharia e a escala da arquitetura.
Estas três peças têm várias particularidades, algumas ligadas à sua verticalidade denunciadora de uma certa herança modernista da escultura, outras que circunscrevem e definem os processos de trabalho da artista e a sua curiosa relação com os materiais. Grandes volumes verticais de tubagem em aço inox, organizados em corpos que partem do plano do chão e se erguem a alturas antropométricas, deixam cair em franjas de fios azuis, laranja e verdes, volumes que se desenham rigorosamente a partir da circunferência do tubo de onde caem. Esta encenação que Ana Santos opera no material mole e informe, atribuindo-lhe um rigor contranatural, é fabricada através de uma meticulosa acoplação dos fios aos tubos por meio de um anel que permite a conexão dos dois materiais, e que obriga a franja de fios a assumir (mesmo que apenas provisoriamente) a estrutura do tubo. Há naturalmente um intercâmbio entre materiais que é provocado de forma a obrigar um a comportar-se como o outro, a assumir paradoxalmente as características de outro material e a sua configuração.
As peças azul e verde são simétricas quando observadas frente e verso, a verde tem um suporte em alturas na base a azul auto sustenta-se. A peça laranja e a única em que as múltiplas vistas possíveis são sempre diferentes pois a obra é constituída por dois corpos semelhantes mas assimétricos, tanto na sua escala como na conformação material. As pequenas diferenças construtivas parecem sugerir um jogo de atenção entre expectativas, uma visualidade puramente pictural e uma agência corporal essencial. A peça verde, que tem uma estrutura na base que suporta a peça, ao contrário das outras duas peças que têm origem no plano terra, introduz um elemento de surpresa neste conjunto, e obriga a uma reconsideração do plano chão, pelo enigma lúdico que provoca: uma pequena estrutura de metal em forma de escada, com dois pequenos pratos circulares, um deles num plano cimeiro vazio que parece aguardar receber não sabemos o quê, para um outro círculo semelhante receber os fios que escorrem desde o tubo que está no topo. As franjas verdes caem meticulosamente rasantes à superfície desse prato. Os elementos rígidos do metal inoxidável recebem os fios de poliéster de forma absolutamente rigorosa, destacando a diferença dos materiais e as reciprocidades que daí podem advir. O metal reluzente dos tubos, além de refletir a cor do caudal de linhas, reflete também vislumbres anamórficos do espaço e objetos circundantes; estas superfícies brilhantes fazem com que a questão da superfície da escultura, que historicamente é opaca e joga precisamente com o carácter absorvente da superfície rasgada aos materiais e dos seus vazios, surja aqui com um valor positivo, pois ativa um ricochete visual das formas alongadas que ocupam o espaço e que são remetidas para o lugar do observador pela propagação vertiginosa de vultos coloridos. Esta peça, com o pormenor arguto da sua base, sugere-nos um enigma que vai para além das questões levantadas pelas relações materiais, construtivas e morfológicas das outras duas peças: parece ser o ponto de contacto perfeito entre a obra de Santos à de Uriel, a acrescer à verticalidade de todas a peças e a uma manifesta articulação cromática.
Esta verticalidade ressuscita uma (já) longa história das artes visuais e dos regimes de visualidade e materialidade que parecem desde sempre incorporar, em questões tão elementares como a organização espacial, uma espectralidade do corpo e das suas formas de representação.
Num capítulo particularmente evocativo acerca da obra de vários escultores modernos, Rosalind Krauss debruça-se sobre as qualidades totémicas de certas obras escultóricas como vestígios de uma certa presença humana que está presente ou é invocada na obra das duas artistas.4
Krauss explica que muitas dessas obras se situam numa fronteira estranha entre a figura humana e o indício abstrato e constituem-se como expressões poderosamente abreviadas, de um conjunto de sentimentos e desejos que alguns desses autores sentiam ser operativos para si e para a sociedade como um todo. Nos conjuntos escultóricos que Uriel e Santos nos propõem, acontece uma operação semelhante; as artistas apostam num totemismo evidente, que coloca em confronto um conjunto de declarações que constituem o assunto da arte moderna - o recurso à horizontalidade e verticalidade como elementos identitários de determinados modelos de representação, o virtude na utilização de certos materiais como garante de reconhecimento de género, a aplicação de determinadas técnicas como enquadramento discursivo do pensamento e da criatividade – para nos obrigarem a pensar no enorme depósito retórico que esta pode ser, ao mesmo tempo que nos indicam uma lateralização dessas características que parecem ser epidérmicas, pois servem para revelar um conjunto de processos de ligação à condição humana, à sua difícil relação com os sistemas materiais que cadastram e condicionam a sua existência e atividade.
As peças de Belén são também sem título, embora descritas por subtítulos como “mãos”, de 2017, “costas” também de 2017, “braço e garrafa”, “descanso” e “torso e perna” de 2018. Além de partilharem com as peças de Ana Santos a principal caraterística formal, pois também as peças de Uriel afiguram em grande medida uma afirmativa verticalidade, ainda podemos apontar os materiais industriais com que as estruturas das esculturas de Uriel são fabricadas, que à semelhança dos enormes corpos cilíndricos de Santos, são também fabricadas em metal, reclamando uma presença industrial, por oposição aos subtis objetos que essas estruturas sustentam, e que de resto são origem e destino das partes do corpo humano que os subtítulos narram.
As peças, Mãos, Torso e Perna, e Braço e Garrafa, são as três peças que mais assumidamente remetem para a omnipresente verticalidade. Estas três peças são constituídas por estruturas metálicas coloridas com tonalidades amarelo e rosa ácidas, que suportam subtis objetos de vidro moldado colorido que aludem a partes do corpo humano. Estes objetos sugerem várias modalidades de aproximação, representação ou indução dos gestos próprios do corpo humano, das suas métricas próprias, traduzidas nas formas e nas estruturas dos objetos e dos gestos a estes essenciais.
As “mãos” são sugeridas por três arcos de vidro carmim que estão acoplados ao poste vertical rosado que lhe serve de suporte. Estes arcos, colocados a diversas alturas, evocam a manipulação destes objetos pela mão humana e as estrias do objeto sugerem atividade preênsil dos dedos. Ao serem colocados a diferentes alturas da compleição vertical do objeto, estas pequenas pegas adiantam ainda um dinamismo e uma colocação corporal que atribui à peça o sentido da ergonomia e da antropometria como ferramentas
indispensáveis à sua compreensão, não só porque o corpo humano é aqui reclamado diretamente, como ainda pela sua ominpresença nas outras obras que encontram em alguns objetos da nossa cultura material, a humanização do gesto e a sua tangibilidade mecânica ou psicológica.
Nas outras duas peças é isto precisamente o que acontece: em Torso e Perna e, Braço e Garrafa, a artista coloca em suspenso, em armações de metal colorido, objetos que sugerem tal como descrito nos títulos, um torso, uma perna, um braço e uma garrafa; os objetos apontados não são aqui descritos ou representados no sentido mais estrito, mas insinuados a partir de objetos que remetem para as suas formas e para os seus elementos caracterizadores. O torso é apresentado por uma pequena peça de azul celeste que lembra a parte cimeira de um tronco e que termina num pormenor que evoca uma gola ou colarinho que emoldura um pescoço (o objeto originalmente usado para fabricar esta peça pode ser de origem absolutamente diferente, mas utilizado por uma similitude formal ao objeto pretendido), a perna parece ser uma perna de uma peça de mobiliário, e o braço e a garrafa são resumidamente um braço de uma cadeira perfurado por um círculo com um diâmetro que invocam o gargalo de uma garrafa. Além destes elementos, a peça é ainda colocada numa posição vertical e posiciona-se em relação à estrutura que a suporta, como um braço humano em relação ao corpo a que pertence e do qual suspende - neste sentido, é a nomenclatura, a estrutura latente do corpo como grelha e o antorpomorfismo dos objetos usados, que mantêm presentes os predicados da afiguração que Uriel propõe. O corpo como estrutura e o os órgãos que o constituem como linguagem. A aproximação de Uriel a um corpo humano cifrado em objetos, lembra-nos como Foucault notou o “...o corpo como objeto e alvo de poder (...) que é manipulado, moldado, treinado; que obedece, responde, torna-se habilidoso e aumenta as suas forças.”5
As outras duas peças, Costas e Descanso, chamam novamente pelas referências que a artista faz recorrentemente ao design e ao equipamento móvel. Estas duas peças destacam-se das outras de Uriel aqui apresentadas, e de toda a lógica de verticalidade da exposição, pela forma como associa elementos que advêm diretamente de objetos reconhecíveis em situações de repouso. Costas, apresenta textualmente as costas de uma cadeira, que ao invés de estar vertical em relação ao assento a às pernas da mesma (para desempenhar a sua função de suporte do corpo sentado), se mostra deitada num suporte metálico azul. Aquilo que vemos parece ser o verso do objeto, tornando a referência ao fragmento da cadeira uma charada linguística e visual.
Igualmente em Descanso, somos confrontados com uma estrutura geométrica que suporta dois braços, semelhantes aos braços da peça Braço e Garrafa. Colocados sobre uma estrutura que bem podia ser uma base retráctil de uma cadeira e que aqui faz de suporte. Os dois braços aparecem colocados em posição de uso, embora dobrados, com se a cadeira estivesse ela mesma em posição de descanso. Os braços rígidos dão lugar a uma configuração flácida, insinuante de uma condição moldável do material usado, em contraponto à rigidez dos objetos a que estes vão buscar as suas formas e à anatomia arregimentada de que dão conta.
O obra de Uriel é assim uma formação discursiva em constante consideração das formas de representação intermediada do corpo na qual o mote da fragmentação desempenha um papel definidor da complexidade das nossas relações com os objetos, com a sua condição transitória, mutante e uma reflexão acerca da amplitude ontológica do corpo como medida de modernidade.
A aproximação da obra das artistas em contexto expositivo também releva um conjunto de posições comuns no que diz respeito ao funcionamento interno e externo das obras: a verticalidade geral e a negação de uma relação de subserviência à estrutura expositiva, numa clara oposição às paredes enquanto elemento organizador do espaço e da articulação das obras, fazem com que a centralização do circuito pelo qual orientamos a nossa aproximação à exposição seja também determinante. As peças aproximam-se do centro do espaço, são autónomas de apoios ou paredes, sugerem uma circulação em movimentos rítmicos, ajustados por cada possível pausa (em cada peça, cada ponto de vista e cada orientação), sugerindo uma atenção ao detalhe e uma libertação do espaço arquitetónico. Cada peça fornece uma porta de entrada, em estado repetitivo, que nos liberta em direção ao infinito.
“Quanto mais situado for um sujeito no seu ambiente, menos prontamente terá a impressão de que algo estranho existe nos objetos e eventos nele contidos.”6, explica-nos Vidler a partir do famoso dictum de Freud. A Estranheza destes objetos é a porta de entrada num labirinto, e o labirinto é muitas coisas.
1 SERRES, MICHEL (1989), Friar - Stakes, Fetishes, Merchandise in Detachment, Ohio: University Press, p. 67.
2 QUINE, WILLARD VAN ORMAN (1963), “Two Dogmas of Empiricism”, in From a Logical Point of View, Logico-Philosophical Essays (segunda edição Nova Iorque e Evanston: revista Harper Torchbook, Harper and Row (Publicado originalmente em 1951), p. 44.
3 AGAMBEN, Giorgio (1998), Outside in, The Comming Community, Minneapolis e Londres: University of Minnesota Press, (1a ed. 1990), p. 67.
4 KRAUSS, Rosalind (1977), “Tanktotem: Welded Images”, in Passages in Modern Sculpture, Cambridge e Londres: MIT Press, pp.147-200.
5 FOUCAULT, Michel (1995), Docile Bodies in Discipline and Punish – The Birth of the Prison, Nova Iorque: Vintage Books, Random House, p. 136.
6 VIDLER, Anthony (1992), “Unhomely Houses”, in The Architectural Uncanny - Essays in the Modern Unhomely, Massachusetts e Londres: MIT Press Cambridge, p. 23.